Marker

República da Cobra

2018



O ódio está sem uniforme
estêncil e costura sobre tecido
150 x 150 cm



Sejamos a febre
estêncil e costura sobre tecido
150 x 150 cm



El Gran Cacique
costura e bordado em tecido
120 x 150 cm



O Estrangeiro
costura e bordado em tecido
68 x 93 cm



Quem desperta de um sonho agitado experimenta sempre a consciência suspensa, como num balanço instável. Enquanto vamos voltando a nos localizar no espaço e no tempo e a perceber nossos membros, também é possível experimentar os efeitos das visões que nos acometeram quando dormíamos: as livres associações, os enredos improváveis, os encontros impossíveis. Neste estado mental, medos e desejos se mordem, memórias pessoais e episódios históricos se costuram, e reelaboramos o mundo de mil maneiras, sentindo no corpo como seria se fosse.

Talvez só seja possível ser contemporâneo à nossa época, ou seja, pertencer verdadeiramente ao nosso tempo, quando experimentamos algo semelhante ao segundo imediato após o sonho. É quando experimentamos uma imaterialidade concreta que, ao mesmo tempo em que afirma uma irrealidade, reproduz no corpo sua materialidade, exercendo nele influência direta. A imaterialidade dos sonhos intervém sobre a materialidade da vida. Neles somos livres para nos desconectarmos radicalmente das exigências e normas mundanas. Neles somos capazes de processar os fenômenos correntes de todas as formas possíveis, observando suas sombras e escuridões, e os fechos de luz que parecem sempre correr de nós. Só aí somos capazes de pensar criticamente, quando flexionamos os limites da realidade.

O trabalho de Randolpho Lamonier irrompe na risca que cruza o real com devaneios, o corriqueiro com o absurdo, o pessoal com o nacional, o micro e o macro, o individual com o coletivo, o pertencimento com a repulsa.

Objetos encontrados, restos de tecido e incursões textuais criam jogos sintático-semânticos que não se esgotam num único sentido, mas se abrem para inúmeras interpretações e reflexões. São gestos enfáticos, que enfrentam frontalmente os absurdos cotidianos, as urgências que nos atravessam, denunciando o intolerável e vocalizando consternações, mas interessados sobretudo na potência dos movimentos que desafiam as regras, que resistem e reinventam maneiras de ler o mundo.

Em suas obras, signos, discursos e narrativas se combinam para nos por em contato com uma certa violência, que não oprime nem produz medo, mas nos tira do nosso campo de cognição, de reconhecimento familiar, para nos lançar no desconhecido, onde as paisagens e as formas ainda não são por completo. Põe em cheque o que nos amarra ao senso comum para deixar furar nosso saco de certezas e verdades. Cada faixa ou objeto surge em toda sua materialidade, mas também como possibilidade de criar imagens a altura das angústias e dos anseios cotidianos. Numa época em que amar é proibido, um rompante liberador nos lembra que viver é sempre perigoso, mas onde pulsa a vida sempre haverá quem grite, quem se coloque na contramão.


Texto curatorial de Germano Dushá para a exposição República da Cobra, de Randolpho Lamonier e Thiago Martins de Melo, realizada entre nov/18 e Jan/19, na Galeria Periscópio Arte Contemporânea em Belo Horizonte)